quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Amigos até que a morte nos separe

A humanidade mantém laços afetivos
mais fortes com os cães do que com
qualquer outro bicho. A ciência vem
desvendando as razões dessa história
de amor que já dura 12 000 anos

Jerônimo Teixeira

AP
Em um dos trechos mais tocantes do livro Marley & Eu, o jornalista americano John Grogan narra como o cão de estimação do título reagiu quando sua mulher, Jenny, sofreu um aborto espontâneo. Marley aproximou-se cabisbaixo da dona e deixou-se abraçar por ela – era como se tivesse sido contagiado por sua tristeza. A relação entre o labrador e a família de Grogan é a matéria-prima do livro – e o imenso interesse despertado pelo mesmo constitui um ótimo indício de como os seres humanos compartilham esse apego pela cachorrada. Mais de 3 milhões de exemplares de Marley & Eu foram vendidos no mundo desde seu lançamento, em outubro de 2005. No Brasil, foram 140.000 exemplares – o suficiente para fazer dele o primeiro colocado na lista de VEJA dos mais vendidos de 2006 na categoria de não-ficção. Seu sucesso dá uma medida da importância que um cão pode assumir na vida afetiva de seus donos. Nos lares, sempre houve espaço para uma gama variada de animais, dos peixes aos gatos e aves. Com nenhuma dessas espécies, contudo, o homem estabeleceu uma relação tão íntima quanto com os cães. Animais de natureza social, eles são capazes de manter uma comunicação muito efetiva com seus donos.
Para além da fidelidade e de outros atributos que costumam ser associados aos cachorros, é aí que reside o diferencial dessa afeição: ela dispensa as palavras. "É uma relação muito básica. Não há complicações, discussões ou melindres", diz Grogan (veja entrevista com o autor). A especialista Patricia McConnell, autora de Cães São de Marte – Donos São de Vênus, atesta essa impressão: "A chave da amizade entre homens e cães é que se trata de uma ligação puramente emocional". O cão tem uma competência ímpar para comunicar seus desejos – comida, água, carinho, necessidade de um passeio. Também é capaz de ler as emoções de seus donos e responder apropriadamente a elas, num fenômeno que os especialistas chamam de ressonância afetiva.

Ana Araújo
UM POLÍTICO "CACHORREIRO"
O senador Arthur Virgílio tem um poodle e um yorkshire, além de duas pit bulls. Orgulha-se da disciplina deles: "É só eu dizer 'feio' que eles obedecem". Nos cães, encontra uma lealdade rara na política: "Nunca vi um cachorro traidor"
De acordo com um levantamento da Associação Nacional dos Fabricantes de Alimentos para Animais de Estimação (Anfal Pet), há hoje no Brasil quase 29 milhões de cães de estimação. A concorrência dos gatos é forte – eles já são "maioria" nos lares americanos, e sua população cresce a taxas maiores que as dos cachorros também por aqui (embora ainda não cheguem a representar metade deles). Mas, apesar disso, é difícil imaginar que os bichanos – com o perdão de seus fãs incondicionais – possam oferecer o mesmo consolo afetivo proporcionado por um cão. O próprio John Grogan, aliás, admite que não conseguiria escrever um livro como Marley & Eu se o animal em questão fosse um gato, pela diferença de natureza nessas relações.
Esse entendimento tácito entre as espécies levou milhares de anos para se aprimorar. "O cachorro passou por um processo de domesticação intenso. Podemos dizer que o cão que conhecemos hoje é uma obra humana", diz o zootécnico Alexandre Rossi. A evidência arqueológica mais antiga dessa amizade, uma mulher enterrada junto de seu cão encontrada em Israel, data de 12 000 anos atrás. Mas sabe-se que essa domesticação se iniciou bem antes, há mais de 100.000 anos, quando os ancestrais do homem começaram a dar abrigo aos filhotes de lobos que rondavam seus acampamentos. A relação, a princípio, era de caráter utilitário: o cão ajudava na caça e na proteção, em troca de comida. Presume-se que aqueles animais que se adaptaram melhor ao convívio humano ganharam o que os biólogos chamam de vantagem adaptativa: tinham mais chance de sobreviver e gerar descendência que os demais. Num processo que o naturalista inglês Charles Darwin chamava de "seleção artificial", o homem foi criando cães cada vez mais apropriados a suas necessidades. Pelo mesmo processo, foi se desenhando a incrível variedade de raças caninas, do minúsculo chihuahua ao enorme dinamarquês.

Otavio Dias de Oliveira
AMOR QUE RESISTE AO XIXI
O vídeo que flagra Ana Maria Braga levando um esguicho de xixi de um poodle faz sucesso no YouTube. Dona de nove cães, ela está acostumada com travessuras. "Gostar de cachorro tem a ver com carência. Preciso do carinho deles", diz a apresentadora, que gasta 500 reais por mês com suas mascotes
Os laços afetivos entre as espécies também foram depurados ao longo da evolução. A comunicação foi facilitada, de saída, pelas semelhanças entre a estrutura social do homem e a dos caninos. Tal e qual ocorre nas sociedades humanas, a matilha é um grupo regido pela hierarquia e no interior do qual os indivíduos têm de saber decodificar as emoções de seus pares. "Assim como o homem, o cão tem necessidade de se ligar a outro ser e adotá-lo como referência", diz a veterinária e psicóloga Hannelore Fuchs. É razoável supor que, sempre que uma nova cria surgia, os homens davam preferência não só aos animais que atendiam a suas necessidades práticas, mas também àqueles que tinham traços comportamentais que facilitavam a compreensão mútua. E assim se refinou a capacidade de ambas as espécies de interpretar o humor e as reações do outro.
Estudos recentes ajudam a entender a natureza dessa ligação. Boa parte deles toma como ponto de partida a comparação entre o comportamento do cão e o do lobo, seu parente selvagem. As duas espécies são muito semelhantes geneticamente – a ponto de a reprodução entre elas ser factível. Mas há um abismo comportamental e tanto: o cão hoje dificilmente sobreviveria nas florestas onde os lobos caçam. Seu meio ambiente é o do homem. "Mesmo os cães de rua não vivem sem alguma forma de interação com o ser humano", observa o psicólogo e estudioso do comportamento canino César Ades, da Universidade de São Paulo. Pesquisas realizadas nos Estados Unidos com animais que vivem em abrigos mostraram que, mesmo não sendo acostumados à presença regular de um dono, eles preferiam a companhia humana à de outro cachorro. "Diferentemente do lobo, o cachorro desenvolveu uma capacidade de interação com o ser humano muito apurada. Mas ele também sabe que o seu dono não é outro cachorro", esclarece Ades.

Lionel Falcon
TAMANHO-FAMÍLIA
Na infância, Adriane Galisteu queria um cão, mas a mãe não permitia. Hoje, a apresentadora divide seu apartamento com George, um golden retriever. Nos passeios, leva pá e saquinho. "Cachorro grande faz cocô grande", diz. O bicho passa seis horas diárias numa "escolinha". Custo: 800 reais por mês
Uma das maiores autoridades mundiais em comportamento canino, o húngaro Ádám Miklósi coordenou uma pesquisa na qual filhotes de cachorro e de lobo foram criados por pessoas, em condições idênticas. Testadas numa série de situações que exigiam comunicação com seus criadores, as duas espécies mostraram resultados diversos. A competência de lobos e cães é semelhante quando se trata de interpretar pistas visuais dos humanos – por exemplo, uma mão apontada na direção de um prato de comida. Mas só os cães fazem "pedidos" ao homem. Em situações nas quais a comida estava escondida numa caixa fechada ou pendurada numa corda que não cedia, os lobos limitavam-se a roer a caixa ou puxar a corda com insistência, enquanto os cachorros tentavam chamar a atenção dos tratadores com latidos e olhares. Sim, olhares: outra conclusão do estudo é que o cão faz mais contato olho a olho com o homem que o lobo. Os lobos também não eram capazes de fazer um sinal conhecido por todo dono de cachorro – eles não sacodem a cauda. Miklósi e sua equipe realizaram ainda pesquisas comparativas de cães e gatos, com resultados similares: os bichanos entendem sinais dos donos, mas não buscam ajuda humana quando enfrentam dificuldades na obtenção de comida. O gato ainda mantém um certo comportamento de caçador. O cachorro é um animal doméstico, que espera a comida do dono.
Para os humanos, o convívio com os cães gera benefícios hoje mais que comprovados à saúde e à mente. Nos últimos anos, os cientistas trouxeram à tona fartas evidências disso. Já se mostrou que as crianças que interagem com eles desenvolvem a coordenação motora e as habilidades socioemocionais mais rapidamente. Os idosos também tiram proveito desse relacionamento. Uma pesquisa americana revelou que, para as pessoas entre 65 e 78 anos, a companhia de um cão contribui decisivamente para evitar a depressão e o isolamento. E, por fim, essa amizade pode ser útil para os doentes. Um exemplo: a pesquisadora Karen Allen, da Universidade do Estado de Nova York em Buffalo, verificou que pessoas com hipertensão que têm cachorros sofrem menos crises em situações de stress.

Nélio Rodrigues/1º Plano
A EDUCAÇÃO PELO CÃO
A cantora Fernanda Takai, da banda mineira Pato Fu, aprendeu noções de responsabilidade com os cães que teve na infância. Com dois deles em casa, ela tenta passar a mesma lição a Nina, sua filha de 3 anos: "Sinto que, no contato com eles, ela está aprendendo a lidar com os limites"
A cooperação entre cachorros e homens alimentou uma quase-santificação do animal. São conhecidas histórias de cachorros que salvaram a vida de seus donos, ou até que morreram ao fazê-lo. A imagem do cão que se sacrifica por seu dono é comovente – mas esse comportamento tem uma explicação bem menos idealizada. "Do ponto de vista da biologia, não existe sacrifício. O que parece comportamento altruísta por parte de um cachorro quase sempre é apenas resultado de seu comportamento de matilha", diz o húngaro Miklósi. Assim, se um cão salva um menino do incêndio, é porque em situações de stress ou perigo o animal tenderia a manter seu grupo todo reunido. E é claro que ele não tem uma noção exata do perigo que corre ao entrar numa casa em chamas.
Isso pode valer para a perspectiva mais objetiva da ciência. Para o dono de cachorro, que tende a avaliar o que vê em seus próprios termos subjetivos, é muito difícil não se impressionar com a lealdade do cachorro. A fidelidade dos cães já era notada na Odisséia, de Homero, composta por volta do século VIII a.C. Quando o herói Ulisses retorna a sua casa na ilha de Ítaca depois de uma ausência de vinte anos, o velho cão Argos é o primeiro a reconhecer seu amo – e morre de imediato, tomado de emoção. Ulisses, por sua vez, deixa escapar uma lágrima por Argos.
Ao longo dos tempos, as virtudes e os defeitos caninos ganharam inúmeras representações culturais (veja quadro). Além da fidelidade, o cão tornou-se símbolo de heroísmo e afetividade – mas também de gaiatice e agressividade. Serviu, ainda, de emblema político. Na França absolutista, o lulu de perua, com suas roupas de grife e seus salões de beleza, virou símbolo da insensibilidade social dos ricos. Por outro lado, pode-se sempre lembrar que o cão também já foi emblema de liberdade. Em seu livro Da Dificuldade de Ser Cão, o escritor francês Roger Grenier conta que certa vez visitou a Checoslováquia comunista na companhia de seu animal de estimação. "Vivam os cachorros", gritou um jovem em Praga quando viu Grenier passeando com seu cão. Era uma forma disfarçada de protestar contra a opressão comunista.
Talvez ninguém tenha tirado tanto proveito da imagem simpática dos cães como os políticos. Sempre que lhes foi conveniente, eles recorreram às mascotes para inflar sua popularidade. Nos Estados Unidos dos anos 20, um político sem carisma como Herbert Hoover se elegeu presidente usando como peça de marketing fotografias em que aparecia ao lado de seu cachorro. De George W. Bush ao presidente Lula, não há político em sã consciência que dispense os cliques junto dos seus bichos de estimação. O ditador nazista Adolf Hitler foi uma exceção à regra. O tirano nunca se deixava surpreender brincando com seus cães, pois isso seria uma exibição inadmissível de um lado terno, humano, que não cabia na figura teatral que cultivava.
As pessoas tendem a ver seu bicho de forma humanizada e a considerá-lo como um filho, um amigo. No fundo, o animal responde à necessidade atávica que todo ser humano tem de cuidar de outro ser vivo. De certo modo, ele funciona como uma criança substituta, especialmente para os donos mais velhos. Não é de estranhar que muitos se intitulem "papai" ou "mamãe" de seu bicho. Nas metrópoles modernas, em que as pessoas tendem a ter menos rebentos, ele preenche uma lacuna afetiva importante. Mesmo adulto, requer cuidados não muito diferentes dos que se dispensam a uma criança, pois é necessário dar-lhe comida, banho e abrigo. Em troca, estará sempre à disposição para brincadeiras e afagos. O cão é um animal gregário, o que marca uma diferença e tanto em relação ao gato, um bicho mais individualista (os felinos em geral não vivem em grupos; a exceção notável é o leão). Em certa medida, ele transfere para suas relações com o homem os traços sociais de uma matilha selvagem. Ou seja, há sempre uma disputa pela dominância.
Na maior parte do tempo, advertem os especialistas, o cão ganha a parada e se estabelece como o maioral do pedaço. São poucos os donos que sabem implementar limites efetivos para seus animais. O predomínio do cão geralmente não traz maiores danos, mas às vezes se traduz em comportamentos incontroláveis e até em agressividade, casos em que se torna aconselhável buscar um adestrador. Quando a relação desanda, há sempre o risco de que a coisa deságüe em tragédia – para o bicho ou, em situações tão raras quanto chocantes, para seu dono. Já se registraram casos de pessoas que foram atacadas e sofreram sérios danos, quando não foram mortas, pelo próprio animal.
A boa notícia é que sempre há a possibilidade de reverter a relação de dominância. Assim como numa alcatéia o lobo-alfa pode a qualquer momento ser desafiado e desbancado por um concorrente mais jovem, também o cachorro que se torna o senhor da casa pode ser colocado na linha pelo dono, se este souber agir com firmeza. Em geral, é possível conseguir o domínio sobre o cachorro com reprimendas firmes e recompensas sempre que ele obedece a uma ordem. Os adestradores propõem um teste definitivo para saber se é o dono ou o cachorro quem manda na casa: coloque um pedaço de carne no chão e diga "não" se o cão se aproximar. O cachorro que aceitou seu papel de "dominado" na relação com o dono só vai comer o petisco quando autorizado. "Todo dono em algum momento se vê diante desse dilema existencial: estabelecer quem manda, o homem ou o cachorro", diz John Grogan, do alto de sua experiência com o bagunceiro Marley. Mas quem é capaz de resistir às ordens de seu amado totó?

Moral canina
As virtudes e os defeitos humanos representados pelos cães
FIDELIDADE
O amor incondicional de um cachorro pelo dono já era tema da Odisséia, escrita pelo grego Homero no século VIII a.C.: Argos, o cão do herói Ulisses, é o primeiro a reconhecê-lo depois de vinte anos de ausência. Ao vê-lo, ele abana o rabo de alegria – e morre em seguida

Divulgação

VAGABUNDAGEM

Cães vadios sempre foram associados à gaiatice e à auto-suficiência. Não faltam representações românticas disso, como o desenho A Dama e o Vagabundo. A metáfora está na origem da expressão "cinismo" (do grego kinos, ou cão). Na Grécia antiga, os filósofos da escola do mesmo nome pregavam uma vida despojada à maneira desses bichos
HEROÍSMO
Os cães são um símbolo de bravura. Merecidamente, diga-se: eles auxiliam bombeiros em resgates, dão apoio à polícia e atuam em frentes de batalha, como ocorreu nas duas guerras mundiais. São, ainda, cobaias – caso da cadela russa Laika, lançada ao espaço em 1957, numa viagem sem volta. Na ficção, essa marca foi consagrada por personagens como Lassie e Rin Tin Tin
Walt Disney

AFETIVIDADE

O amor do cão por sua prole faz dele um animal "família". Poucas cenas traduzem de forma tão eloqüente os laços entre pais e filhos quanto a de uma cadela amamentando seus filhotes. Essa alegoria foi fartamente explorada na literatura e no cinema – o filme 101 Dálmatas é um exemplo

AGRESSIVIDADE
A ferocidade é um traço negativo. Não à toa, na mitologia grega as portas do Inferno são guardadas por Cérbero, um cão de três cabeças. Esse lado do comportamento canino é identificado com a maldade – é o que se transmite, por exemplo, na imagem de um pit bull espumando de raiva

Animais políticos
Com raras exceções, os poderosos de plantão adoram ser flagrados em companhia de cães – é uma forma de venderem uma imagem mais humana de si próprios. Eis alguns exemplos
HERBERT HOOVER (1874-1964)
Nos anos 20, o político pouco carismático conseguiu eleger-se para a Presidência americana. Como arma de marketing, veiculou fotografias em que aparecia com ares de bonachão ao lado de seu cachorro, King Tut


George Skadding/Time & Life Pictures/Getty Images

FRANKLIN D. ROOSEVELT
(1882-1945)
O presidente que conduziu os Estados Unidos na II Guerra Mundial era inseparável de seu terrier escocês, Fala. Certa vez, foi acusado de deslocar um navio de guerra só para buscar o cachorro, que havia sido deixado para trás numa viagem. Roosevelt declarou que, como escocês, Fala ficou com "a alma furiosa" com o boato

ADOLF HITLER (1889-1945)
O ditador nazista morria de amores por seus cães – mas achava que não ficava bem para sua imagem ser flagrado em público ao lado deles. Por isso, não gostava de ser fotografado com os cachorros

Doug Mills/AP


GEORGE W. BUSH

O presidente americano tem dois cães, os terriers escoceses Barney e Miss Beazley (uma terceira mascote, a springer spaniel inglesa Spot, morreu em 2004). E faz questão de afagá-los em público – mais ainda depois que seu governo entrou em crise



Ana Nascimento/Ag. Brasil

LULA

O presidente brasileiro volta e meia também aparece junto de Michele, a fox terrier da primeira-dama, Marisa Letícia. Em 2003, aliás, o fato de um carro oficial ter sido usado para transportar a cadelinha causou protestos no Congresso Nacional

Cachorros difíceis valem mais a pena
O jornalista americano John Grogan está há dezoito semanas na lista de mais vendidos de VEJA com Marley & Eu. Com 140.000 exemplares vendidos no Brasil, o livro é uma bem-humorada crônica da convivência de Grogan com um cão labrador. Nesta entrevista, ele explica por que a ligação com os cães é tão especial
O QUE HÁ DE TÃO INTERESSANTE NO SEU CACHORRO QUE EXPLIQUE O SUCESSO DO LIVRO?
Marley & Eu não é apenas sobre um cachorro. É a história da relação desse cachorro com uma família. O livro mostra como um cão mudou a vida de um jovem casal e, mais tarde, dos seus filhos pequenos. Os leitores se identificam com isso. Recebo cartas e e-mails do mundo todo, inclusive do Brasil. São pessoas que viveram histórias muito parecidas com aquela que eu relato. Isso talvez explique o sucesso. O livro fala de uma experiência que muitas pessoas já tiveram: ter um cachorro que tocou sua vida.

QUE ESPÉCIE DE LIGAÇÃO EXISTE ENTRE AS PESSOAS E OS CÃES?
É uma relação muito básica. Não há complicações, discussões, melindres. É uma ligação pura, que vem do coração. Um apego emocional.

MARLEY DESTRUÍA MÓVEIS, OBJETOS DA CASA. QUANTO CUSTOU TER UM CACHORRO TÃO BAGUNCEIRO?
Não cheguei a fazer a conta na ponta do lápis. Mas, como estimativa geral, Marley deve ter custado algo na casa de 3 000 a 4 000 dólares por ano, contando comida, gastos com veterinário e medicamentos, além da destruição que ele provocava. Muitas das coisas que ele destruía eu mesmo consertava. Ele gostava de cavoucar as paredes, o que apurou as minhas habilidades de pedreiro amador. Esses remendos não custavam muito dinheiro, mas consumiam tempo. Ele também estragou itens mais caros, como um sofá e um colchão novo, que ele furou de lado a lado. Agora que o livro se tornou um best-seller, Marley pagou todas as suas dívidas. O prejuízo foi recuperado, e com juros.

IMAGINE QUE VOCÊ NÃO HOUVESSE ESCRITO O LIVRO. VALERIA A PENA TER TIDO O CÃO MESMO ASSIM?
Sem dúvida. Marley viveu treze anos conosco. Quando o segundo de nossos três filhos nasceu, estivemos muito perto de abandonar o cachorro. Tínhamos dois bebês pequenos em casa, e Marley continuava destruindo coisas. Dava muito trabalho. Mas não desistimos dele, felizmente. Antes mesmo da sua morte, nos últimos dias de Marley, minha mulher e eu já rememorávamos os treze anos do cachorro com nostalgia. Sabíamos que Marley havia sido uma das melhores experiências de nossa vida.

VOCÊ TEM OUTRO LABRADOR AGORA. QUE TAL O NOVO CACHORRO?
É uma fêmea. Eu a chamo de Gracie, a anti-Marley.

POR QUÊ?
Gracie é o exato oposto de Marley. Ela é tranqüila, preguiçosa. Quase não faz nada de errado. Eu digo para ela: "Gracie, eu nunca vou escrever um livro sobre você. Você é muito tediosa".

E UM CACHORRO TEDIOSO PERMITE UMA RELAÇÃO TÃO PRÓXIMA QUANTO AQUELA QUE O SENHOR TEVE COM MARLEY?
Eu tenho uma teoria: é com os cachorros difíceis que temos uma ligação mais profunda. Somos obrigados a investir tanto de nós mesmos para fazer essa relação funcionar que se torna impossível não ter sentimentos muito intensos por esses animais. Com os cachorros tranqüilos, o investimento pessoal é bem mais leve – nós apenas coexistimos com eles. Eu amo Gracie do fundo do coração, mas Marley era um animal de estimação memorável. Foi o cachorro da minha vida.

O SENHOR ACREDITA QUE UM LIVRO COMO MARLEY & EU PODERIA SER ESCRITO SOBRE UM GATO?
Eu diria que não. Não tenho gatos, embora goste deles. De amigos que têm gatos, eu observo que o investimento pessoal que eles exigem é bem menor.

O SENHOR E SUA MULHER, JENNY, COMPRARAM O LABRADOR MARLEY COM A IDÉIA DE QUE CUIDAR DE UM CÃO PODERIA SER UM BOM ENSAIO PARA QUEM DESEJA TER FILHOS. O SENHOR RECOMENDARIA UM CÃO PARA O CASAL COM PLANOS DE AUMENTAR A FAMÍLIA?
Com Marley, Jenny e eu tivemos de tomar conta de uma criatura pela primeira vez na nossa vida de casal. Ele dependia de nós para tudo. Isso nos ajudou a desenvolver um senso de responsabilidade importante para quem deseja ter filhos. Mas não recomendo que alguém compre um cão só para treinar seus dons paternais. O mais importante é gostar de cachorros.

QUAL FOI A IMPORTÂNCIA DE MARLEY PARA SEUS TRÊS FILHOS?
O melhor presente que um pai pode dar a um filho – afora uma boa educação, é óbvio – é um animal de estimação. O animal ensina lições muito importantes. Ajuda a desenvolver empatia, compaixão e bondade por outros seres. E, quando o animal envelhece, a criança tem a oportunidade de entender a morte num contexto relativamente seguro, sem traumas. O último presente de Marley a nossa família foi este: ele tornou mais clara, para meus filhos, a concepção da morte, a idéia de que a vida é finita. É muito mais fácil para uma criança aprender isso com um cão do que com a morte dos pais ou dos avós. Meu pai morreu cerca de um ano depois de Marley. Meus filhos conseguiram entender melhor a morte do avô graças ao cachorro.

NO LIVRO, O SENHOR DÁ ALGUNS CONSELHOS SOBRE COMO ESCOLHER UM BOM FILHOTE DE CACHORRO – COISAS QUE NÃO SABIA QUANDO COMPROU MARLEY. O SENHOR SEGUIU ESSES PASSOS PARA COMPRAR GRACIE?
Sim. Uma das coisas mais importantes ao comprar um cachorro é buscar uma raça que seja compatível com o seu estilo de vida. Diferentes raças têm diferentes personalidades. Também é importante comprar o cão de um criador de qualidade, em quem você confie. Evite os criadores irresponsáveis, que tiram uma ninhada depois da outra para conseguir o máximo de dinheiro possível. E o ideal é encontrar um criador que mantenha os dois pais em sua casa. Se você conhecer o pai e a mãe do seu cãozinho, terá uma boa indicação da personalidade que ele terá. Fizemos isso com Gracie. Funcionou: ela é uma cachorra bem-comportada.

QUAL SERIA A PERSONALIDADE DE UM DONO DE LABRADOR?
Se você quer um labrador ou algum cachorro de grande porte, é necessário ter espaço para ele. E é preciso assumir o compromisso de exercitá-lo todos os dias. Se você faz o tipo sedentário, que passa o dia em casa vendo TV, o labrador não é o cachorro certo. Também não é um cachorro para quem trabalha muito e fica fora de casa doze horas por dia. Quando são deixados sozinhos, os labradores muitas vezes desenvolvem problemas de personalidade e se tornam muito destrutivos. Trata-se de animais sociais, que adoram a companhia humana – e por isso são a raça mais popular nos Estados Unidos hoje. Você precisa encontrar a raça que caiba no seu estilo de vida.

ALGUNS DONOS NÃO LEVAM SUA PAIXÃO POR CÃES AO EXTREMO, COM CABELEIREIROS, PERFUMES, ROUPAS?
Sim. Eu vejo gente até furando a orelha de seus cães para colocar brincos caros. Em certo sentido, o cachorro pode ser um hobby. Mas é imoral gastar fortunas com um cachorro quando há crianças passando fome. E os cães não exigem nada disso. Eles precisam de comida, de atendimento veterinário regular e de donos que os tratem bem. Algumas pessoas tratam seus cachorros como crianças com pêlos. Podemos amá-los muito, como eu faço, mas eles não são crianças. São animais, e devem ser tratados de acordo.

Uma questão de linguagem
Selecionado ao longo de séculos de evolução por suas habilidades de interação com as pessoas, o cachorro é um produto do ser humano. Mas ainda subsistem problemas de comunicação entre as duas espécies. Eis algumas dicas para superá-los
Ilustrações Lucia Brandão

• O abraço é um comportamento de primatas, como o chimpanzé e o homem. Cachorros não expressam afeto desse modo. Aqueles acostumados à companhia humana toleram, mas não apreciam o gesto. Se quiser demonstrar afeto, opte pelo carinho atrás da orelha ou na barriga. Nunca abrace um cão que você não conhece – a coisa pode acabar em mordida.
• Do seu lado, os cães gostam de expressar afeto lambendo o rosto do dono – o que nem todas as pessoas suportam bem.
• Cães não têm memória do que fazem de certo ou errado. Se você chegou em casa e descobriu o sofá destruído, não adianta xingar seu cachorro – ele não vai entender por que você está zangado. A prática de esfregar o focinho do bicho no xixi que ele fez no tapete também só gera confusão e humilhação. Repreenda seu cão somente quando você o pega no ato.
• Cães transferem para sua relação com os donos parte da hierarquia de uma matilha. A questão é quem será o líder – o dono ou o cão. Para evitar problemas futuros, mostre quem manda desde o início. Estabeleça limites e dê ordens firmes desde cedo a seu filhote.
• Muitos donos chamam a si mesmos de "mãe" ou "pai" do cachorro. Não há nenhum problema nisso, desde que se tenha em mente que um cão tem necessidades muito diferentes das de um ser humano. Ele não é uma criança – a não ser em um ponto específico: como as crianças, os cães precisam de limites bem estabelecidos para ser bem educados.
• Cuidado com os exageros. Seu cão pode até não se importar de vestir roupa, mas perfumes, sobretudo, podem ser agressivos para o animal – lembre que ele tem um olfato sensível.
• Acostumados à comunicação verbal, seres humanos às vezes não prestam atenção à sua linguagem corporal – e mandam sinais contraditórios para seu cão. É comum uma pessoa inclinar-se para a frente na hora de chamar seu animal. Esse gesto, porém, costuma ser interpretado pelo cão como uma ordem para parar seu movimento. Dê suas ordens de uma posição ereta.

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