quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

CÍRIO DE NAZARÉ: "A POROROCA DA FÉ"

Adriana Bisi Nicolau

Nesse trabalho não há a pretensão de interpretar o acontecimento religioso da forma como se apresenta, uma vez que ao fazê-lo, perderia-se seu koan, o que há de mais sagrado nele. Tenta-se de forma simples amplificar seus símbolos, clarificá-los e explorar as riquezas que contém, para se possível, compreendê-los e senti-los de forma profunda, e quem sabe, arquetípica. Há o cuidado de fazer a interpretação sem afastá-los de sua imagem original, preservando assim sua prima imago; caso contrário, a imagem do símbolo perderia-se nas associações e investigações do mesmo.
A história do Círio será aqui descrita desde o primeiro milagre realizado pela Santa em Portugal, até a sua chegada em Belém, onde ocorreu um novo milagre, e continua na descrição do Círio, festa religiosa elaborada como demanda do povo em agradecimento à Nossa Senhora. A partir daí dá-se início ao trabalho com os símbolos.
O Círio de Nazaré é realizado no segundo domingo de outubro desde 1793. A estátua da Santa teve origem na cidade de Nazaré na Galiléia, a imagem representa a Virgem Maria, tendo em seus braços o Menino Jesus segurando uma esfera azul.
A imagem da Santa passou a ser cultuada em Portugal, em decorrência do milagre ocorrido na manhã do dia 14 de setembro de 1182 com D. Fuas Roupinho, amigo do rei Afonso Henrique. Durante a perseguição de uma caça, D. Fuas perdeu o controle das rédeas de seu cavalo, o qual corria descontroladamente em direção à um abismo. Desesperado com a possibilidade da morte iminente, D. Fuas lembrou-se da Imagem e exclamou: "Senhora, valei-me!". No mesmo instante o cavalo estancou com ímpeto, cravando as patas traseiras nas pedras, rodopiando sobre e elas pondo a salvo o cavaleiro. A caça e os cachorros despencaram pelo precipício.
A partir de tal acontecimento o fidalgo mandou erigir no local uma capela para a Virgem de Nazaré, que se tornou conhecida como Capela da Memória. Mais tarde em 1377 foi transformada pelo rei D. Fernando em templo maior, elevada à condição de matriz. Desde então, sempre em 14 de setembro, os portugueses se reúnem para reverenciar Nossa Senhora de Nazaré.
A devoção de Nossa Senhora de Nazaré foi introduzida no Pará pelos padres jesuítas, tendo o culto começado na cidade da vigia, no século XVII. O primeiro milagre que deu origem à procissão em Belém, ocorreu em outubro de 1700. Conta-se que um humilde lenhador filho de português, morador do atual bairro de Nazaré, ao andar pelos lados do igarapé Murutucu, onde atualmente fica uma travessa que passa por traz da atual Basílica de Nazaré, encontrou a imagem da Nossa Senhora de Nazaré trazida por algum devoto oriundo da Vigia. Era uma réplica da estátua que se encontra em Portugal, esculpida em madeira, com aproximadamente 28 cm de altura. Ela estava depositada entre pedras lodosas, bastante deteriorada pela ação do tempo. Encantado com a descoberta , o lenhador a levou para sua casa, improvisando ali um pequeno altar. De acordo com a tradição, a imagem não ficou na casa, retornando misteriosamente ao lugar do achado. O fato repetiu-se outras vezes, até que o lenhador decidiu erguer, às margens do igarapé, uma humilde capela. A propagação desse episódio repercutiu como milagre, chamando vários fiéis que iam conhecer a imagem e prestar-lhe culto. O governador da época determinou a remoção da imagem para o Palácio da Cidade. Não obstante a vigília de soldados colocados à porta da capela, a imagem novamente desapareceu, voltando ao seu nicho primitivo. No lugar está erguida, hoje, a suntuosa Basílica de Nossa Senhora de Nazaré.
Em 1773 o Bispo do Pará D. João Evangelista, colocou a cidade sob a proteção de Nossa Senhora de Nazaré. Em 1774 a imagem foi levada à Portugal, onde foi submetida a uma completa restauração. Seu retorno ocorreu em outubro desse mesmo ano, em Romaria que foi acompanhada pelo Bispo, Governador, a tropa e os fiéis. Este foi considerado um autêntico primeiro Círio.
Etimológicamente, a palavra "Círio" quer dizer, 'vela grande de cera'. A procissão reúne centenas de milhares de pessoas, em lento cortejo de quatro horas, entre os quase cinco quilômetros que separam a Catedral Metropolitana da Basílica de Nazaré. Este cortejo é o ápice das manifestações profanas e religiosas que acontecem durante quinze dias: a chamada quadra nazarena. Nesse período vive-se um clima de confraternização e alegria que não chega a ser superado pela tradicional festa natalina.
A procissão é acompanhada nas ruas e através de barcos, na chamada Romaria Fluvial que foi introduzida em 1985, buscando homenagear todos os que vivem na dependência dos rios. O Círio é dividido em três momentos: a Trasladação, o Círio e o Recírio.
A Trasladação é uma procissão à luz de velas; a palavra vem do verbo trasladar que significa 'levar de um lugar a outro', ocorre uma noite antes do Círio. Tem o simbolismo de reviver a história do descobrimento da imagem e de seu retorno ao local do achado. Nela somente a Berlinda (carro onde é levada a imagem da Nossa Senhora) é utilizada; o trajeto da trasladação ocorre no sentido inverso ao do Círio. Aqui é possível observar cenas de muito sacrifício e emoção que atingem proporções semelhantes à do Círio.
O Círio começa às seis horas da manhã com a celebração da missa. As pessoas aos poucos vão indo para as ruas do trajeto do Círio. São como pequenas vertentes que irão formar, aos poucos, o grande caudal a irromper na manhã ensolarada de Belém. Os espaços vão sendo preenchidos até que não haja mais lugar vazio (até as árvores são tomadas pelos fiéis).
Às sete horas o Arcebispo conduz a imagem de Nossa Senhora até a Berlinda, para dar início ao trajeto do Círio.
O Círio tem vários objetos simbólicos que podem ser apreciados durante o seu trajeto, como os carros de recolhimento de promessas, os objetos de promessas, as velas, as crianças vestidas como anjos, as lembranças folclóricas e a corda. Nos carros de recolhimento são depositados os mais variados tipos de pedidos, que vão desde imitações de casas, até de membros humanos, são peças feitas com madeira ou cera. Neles também são levados objetos que simbolizam o agradecimento pela graça alcançada no ano que passou. As velas também são encontradas em grande número simbolizando os pedidos. À esses carros dá-se o nome de Carro dos Milagres.
Dentre os objetos mais conhecidos e os que requerem maior sacrifício físico e emocional, está a Corda, a grande promessa. A corda foi incorporada na procissão em 1868, veio substituir a junta de bois que puxava o carro da Santa, posteriormente passou a separar a Berlinda da multidão. É um grosso trançado de sisal que possui alguns quilômetros de comprimento. Fica ao redor da Berlinda e do Carro dos Milagres. Na Corda o que se vê é uma impressionante coreografia de vai-e-vem ondulante. Músculos retesados, rostos comprimidos, pés descalços, suores banhando os corpos já inteiramente colados uns aos outros. Nela ninguém consegue controlar aqueles movimentos involuntários ditados por uma força presente, mas invisível. A Corda é a representação pungente da solidariedade, unindo na mesma determinação e vontade, uma multidão de anônimos que se identifica na gratidão, na esperança e principalmente na fé. Durante a caminhada homens e mulheres sedentos clamam por água, o sol aumenta o calor já desgastante da caminhada em sí, realizada entre tropeços e empurrões. Água é oferecida pelas pessoas de todas as formas possíveis, o importante é mitigar a sede. Deixar a corda? Nem pensar.
Durante a procissão há um sistema de sonorização nos quase cinco quilômetros do trajeto, onde tocam hinos sacros que incentivam o povo a cantar, promovem reflexões sobre temas bíblicos, e estimulam a multidão a rezar. Há também o momento da queima de fogos, em que os braços se erguem para o céu como se a multidão clamasse naquele instante por todas as esperanças. Não é raro contemplar-se, em rostos rudes de homens cansados, as marcas da emoção.
Às onze horas, a Berlinda chega ao Centro Arquitetônico de Nazaré, totalmente tomado de gente. A imagem é retirada para a celebração litúrgica. Começam os pagamentos das promessas de caminhar de joelhos até o altar. O Bispo ergue a imagem abençoando a multidão e neste instante os fiéis gritam com louvor: "Viva Nossa Senhora! Começa a missa e termina mais um Círio.
Uma semana após o Círio, acontece o Recírio que é uma procissão de despedida. Nesta fase, também percebe-se as expressões sofridas, serenas, suplicantes, agradecidas, esperançosas ou simplesmente contemplativas. Despedem-se da Santa com a certeza de tê-la novamente no ano que vem.
Nossa Senhora de Nazaré é para os fiéis a Maria de Nazaré, a Senhora da Berlinda, nossa Mãe e Mãe de Deus.
O contagiante espetáculo do Círio faz com que nos sintamos diante de algo familiar, algo que se insere num espaço que já fora ocupado anteriormente, talvez de forma diferente, mas com a mesma intensidade. Acompanhar o Círio traz a sensação de estar fazendo uma contribuição pessoal com um aspecto coletivo. É como se fosse a união do uno e do todo. Homens unidos no mesmo caminho da fé. Percebe-se nos poucos que não participam do acontecimento, que existe um ar de medo: é como se estivessem indo de encontro ao sagrado, por não serem testemunhos de um encontro de fé.
Podemos pensar que o Círio promove uma nova auto-interpretação do homem, redefine suas relações com os outros, contribui para que pensem em novas possibilidades de realização pessoal. Nesta época do ano, principalmente, o homem parece estar mais próximo do sagrado, daquilo que muitas vezes pensa ser inalcançável. As realizações dos pedidos e o cumprimento das promessas é a forma que encontra de mostrar a sua devoção, o seu respeito e humildade perante o divino. O Círio mostra ao homem a sua natureza humana, e também divina. Alcançar um pedido é considerar o milagre da Nossa Senhora e também perceber o quanto a determinação do devoto é importante para tanto. Percebe-se nesse momento que a única sensação mais forte que a energia da massa é a fé.
Aqui ocorre uma identificação íntima com o divino, estar acompanhando a procissão, segurando a corda, assistindo-a passar nas ruas é mais do que nunca estar com a Santa, protegendo-a, se protegendo. O espírito de solidariedade é o mais presente entre os fiéis, dão tudo aquilo o que gostariam de receber. Homens e mulheres participam lado a lado no mesmo rio de fé. Nessa festa religiosa o ser humano dialoga com aquilo que não é ele, assim se constrói e se enriquece, exercendo a sua capacidade de aceitar (quando os pedidos não são realizados), de suportar (sacrifícios) e de comungar a diferença, constituindo o vigor de sua identidade pessoal.
Podemos observar na festa do Círio um padrão arquetípico de comportamento, é esperado que se repitam determinadas situações e que também apareçam símbolos que outrora puderam ser observados. Tal fato é característico dos rituais, eles ocorrem várias vezes da mesma forma anterior, para que as pessoas possam introjetá-los de acordo com suas necessidades individuais, dentro do seu tempo. Nas palavras do psicanalista Luigi Zoja os ritos "regem e favorecem as transformações psíquicas que acompanham o nosso desenvolvimento. Sem eles, essas passagens tornam-se mais problemáticas, podendo mesmo ser bloqueadas ou abortadas, resultando num grande prejuízo para nossa vida anímica, diríamos que esses rituais regulam as transformações energéticas individuais e coletivas".
O Círio, como festa religiosa, cumpre exatamente a etimologia da palavra 'religião', do latim religare, que tem como significado "unir, atar". Não apenas os fiéis que seguram a corda, mas também os que participam desta festa, exercem o ato de se ligar ao divino, de se atar aos seus símbolos, mesmo é claro, sem ter consciência.

Inicio a interpretação dos símbolos que aqui será desenvolvida, a qual ajudará como veículo facilitador para compreensão geral do tema deste trabalho.
O símbolo exprime a melhor representação de algo que não pode ser representado, é dinâmico, mutável. Algumas imagens que podem ser vistas como ocultas e vagas, têm um simbolismo pessoal e universal. A produção dos símbolos é feita de forma espontânea e inconsciente, o homem é quem os produz, mesmo sem se dar conta. Os símbolos podem ser percebidos como naturais e como culturais. Os símbolos naturais são derivados de conteúdos inconscientes da psique, representam um número imenso de variações das imagens arquetípicas essenciais, o indivíduo os manifesta da forma mais singular possível e a consciência os percebe com deformações, o que se dá em função de sua grande carga energética; os símbolos culturais expressam verdades externas, ou seja, tornaram-se imagens coletivas e podem ser compreendidas de forma universal.
No Círio, percebe-se como símbolos naturais aqueles trazidos pelos fiéis, são os que simbolizam as suas promessas, tais como: miniaturas de casas, de barcos, tijolos, cruzes, anjos, entre outros; os símbolos culturais são aqueles que aqui tentaremos explorar , por exemplo: a imagem da Nossa Senhora de Nazaré, a Corda, as Velas, os Sacrifícios, a Berlinda , a Esfera Azul, entre outros.
Todos estes objetos estão impregnados de mana, de pura energia que significa também 'força em ação', uma força oculta que emana tanto do objeto quanto do sujeito.
Sabemos que a linguagem não abarca o significado do símbolo, talvez a imagem, pois o que não pode ser dito pode ser sentido. Ernst Cassirer encara as diversas formas de simbolismo como expressões de uma energia independente do espírito humano, através da qual a simples presença de fenômenos adquire um "significado" preciso; o que pode-se chamar de função natural simbolizante da consciência. Esse significado preciso é sentido de forma singular por cada sujeito em particular, conforme a representação simbólica que o símbolo tem para ele.

Como diz Jung: "Um símbolo não traz explicações; impulsiona para além de si mesmo na direção de um sentido ainda distante, inapreensível, obscuramente pressentido e que nenhuma palavra de língua falada poderia exprimir de maneira satisfatória". Esse é um dos principais objetivos desse trabalho, impulsionar o outro à ir em busca do inapreensível, de seus símbolos pessoais, revivê-los a cada instante. O símbolo que não é dinâmico não tem vida, acaba, "morre".
Pensando no simbolismo de Nossa Senhora, supõe-se que a razão da sua escolha, desde o momento em que a escultura foi feita, "se deve ao desígnio de Deus de associar o feminino como fator decisivo à economia da redenção e da divinização da humanidade ". Entende-se por isso, a força que exerce o arquétipo da Grande Mãe sobre a humanidade e a maior facilidade que temos em se ligar à Deus através do feminino, então fica a pergunta: "Por ventura Deus não criou o feminino para poder se comunicar totalmente a ele e assim 'realizar-se' a si mesmo sob esta forma determinada?".
Nossa Senhora de Nazaré também é símbolo da élpis, esperança; o que mobiliza as pessoas a participarem cada vez mais do Círio, crendo poder concretizar seus pedidos. Quando a Santa é vislumbrada na Berlinda, que surge no meio da multidão, a impressão que se tem é a de uma epifania, da manifestação direta de um deus, ou melhor, de uma deusa. Lágrimas escorrem nos rostos, amigos se abraçam, olhares ser interpassam, é a paz do povo. Sabe-se que a manifestação direta de um deus promove o que há de mais funesto, mas em se tratando de uma metáfora, no Círio as pessoas renascem com uma nova esperança de vida.
Como já foi dito anteriormente, Nossa Senhora de Nazaré é para os fiéis nossa Mãe e Mãe de Deus. Nela há o apaziguamento da angústia, da solidão, do sofrimento, da depressão, da falta, dos males, é a mãe boa que livra os filhos do mal. O choro que se vê, que se sente, clama por amparo, atenção e sobretudo amor. Senhora, olhai por nós! Então pergunta-se, que mãe simbólica é essa? O que queres dessa mãe e o que buscas em ti? Provavelmente poucos saberiam responder, mas indubitavelmente todos no fundo d'alma, sentem a resposta.
Afinal, sabe-se que o feminino constitui a fonte da vida, nela reside o poder da plenitude vital, o repouso e a constelação, o combate defensivo. No Círio este é o sentimento, principalmente quando Nossa Senhora é quem os defende das angústias e dificuldades de cada ano.
A Corda como se pode perceber é o objeto mais requisitado e o que exige maior sacrifício dos fiéis. Assistir a este espetáculo é poder perceber claramente a solidariedade humana, o desejo de reconciliação universal. A corda também está ligada a ascensão, a alguma espécie de vínculo; neste simbolismo há o desejo de virtudes secretas ou mágicas, que trazendo para este contexto, pode-se dizer que se trata das inúmeras promessas e pedidos que são feitos, os quais ninguém tem acesso, a não ser o Romeiro. O termo ascensão descrito aqui não está associado a hierarquia, ao sentido horizontal, ou seja, onde um sujeito é diferenciado do outro conforme suas qualidades ou aquisições. Ao contrário, neste contexto a relação é de igualdade, aqui todos são filhos da mesma mãe, Mãe-Nossa Senhora, Mãe-terra. Suas causas e sentimentos são diferentes mas todos mantém um objetivo em comum, alcançar a graça. A relação mantida com Nossa Senhora é permeada pelo amor.
A forma que a Corda toma na procissão, pode ser vista como a grande Mandala ou Círculo Mágico, que fica ao redor da Berlinda para que a mesma seja protegida de algum mal. "No centro da Mandala, encontra-se o próprio deus, ou símbolo da energia divina...". A mandala também simboliza o lugar do sagrado, temenos, que protege o centro; no Círio, a função de proteção à Santa.
Na trasladação o que mais desponta entre os fiéis são os pírois, a chama das velas. Velas que queimam sem se sentir, que iluminam sem que se perceba, são a luz no meio da escuridão. De que escuridão poderia-se falar, escuridão da sombra, da vida, de dificuldades...? Ou será a escuridão da falta de escolha, daquela que impossibilita o sujeito de poder escolher? O sentimento de angústia vem alimentado pela impossibilidade de se fazer uma escolha. Muitos fiéis pedem luz a Santa, que ilumine seus caminhos, que os possibilite a fazer ao menos uma escolha. Pois no meio dessa escuridão nada é visto, nada pode ser escolhido, é preciso a luz para que se possa ver inclusive as trevas. Na busca de significados, a vela acesa também é tida como "símbolo da individuação", como "a luz da alma em sua força ascensional, a pureza da chama espiritual que sobe para o céu, a perenidade da vida pessoal que chega ao seu zênite".
Um povo afro-americano que vive na América, no Natal tem o costume de realizar um ritual chamado Kwanzaa*. Nesse ritual, os membros da família ou do grupo que participam, se vestem com roupas típicas, bastante coloridas , sentam-se em círculo, distribuem presentes de Natal e acendem um candelabro de sete velas, chamado Mshumaa. As velas simbolizam os sete princípios julgados chaves para a sociedade negra: a unidade, a autodeterminação, o trabalho coletivo, a economia cooperativa, o propósito, a criatividade e a fé. Algumas velas têm a cor vermelha, preta ou verde, cores da nação africana, também representam o sangue, a cor da pele e a raça negra. O organizador deste ritual o considera "o momento de reafirmação da identidade africana". A celebração dura sete dias, um dia para cada princípio. Neste ritual também podemos perceber o simbolismo da chama das velas, seu princípio organizador e fundamental para a elaboração de uma identidade, seja ela social ou pessoal.
O ato do sacrifício pode ser percebido como ausência parcial de contato com o real. Nesse momento o ser humano adquire forças que não são compreendidas de forma racional, é como se a força humana fosse transformada em força primal, ou seja, força sobre humana. Andar de joelhos até o altar, caminhar durante todo o trajeto da procissão descalços e participar da Corda, são alguns atos de sacrifícios realizados durante o Círio. Aqui choram de emoção e não de dor; nessa hora não há espaço para tal sentimento, o medo ou a dor fariam com que desistissem dos seus sacrifícios. Aqui só há espaço para fé e esperança. Nesse momento algumas funções da consciência são alteradas, o sujeito só consegue ver, sentir e perceber o seu objetivo; dentre essas funções a única que exerce força entre as demais é a intuição, ela está tão energizada quanto a chama das velas.
O sacrifício também é visto com a ação de tornar algo sagrado, separado daquele que o oferece; como prova de dependência, obediência, arrependimento ou amor. É o símbolo da renúncia aos vínculos terrestres (realidade) por amor ao espírito ou à divindade. Está ligado a uma idéia de troca a nível de energia criadora ou da energia espiritual. O sacrifício celebra uma vitória interior.
Os pedidos e promessas feitos pelos Romeiros são depositados nos Carros dos Milagres. Estes Carros ficam cercados por uma corda mais fina do que a que cerca a Berlinda, lugar onde fica a estátua da Santa. Este costume de cercar os carros simboliza o cuidado e a proteção que os fiéis tem com os mesmos. É como se eles estivessem protegendo as suas promessas, os seus pedidos, além da Santa. Como já foi dito anteriormente, as promessas ficam em segredo e sigilo até que sejam cumpridas, o ato de contar implica em perder o que nelas há de sagrado, tornando-as profanas. A Berlinda ou santuário é o lugar dos segredos, lugar preservado, que encerra um tesouro essencial.
A Esfera Azul carregada pelo menino Jesus tem a idéia de representar um presente, um tesouro, é como se fosse a esfera da esperança. Nada melhor do que associar a esperança a imagem de uma criança. Dentro deste enfoque vale lembrar a 'criança divina', aquela que nasce no coração dos homens a todo instante e resguarda as suas almas. Além da Corda, a Esfera também pode ser associada ao Círculo Mágico ou Mandala. Farei um analogia entre um ritual realizado pelos Índios Pueblos no Novo México e o Círio, para ilustrar a universalidade deste símbolo. É costume entre os Índios, num ritual de cura, fazer na areia o desenho de uma Mandala com quatro passagens, para curar um homem doente. "No centro constroem uma casa 'de suor', lugar de cura, lá o paciente submete-se ao tratamento de suor". Pintam ao lado uma outra Mandala, que é colocado no centro da grande Mandala - e no meio dela há um vaso com água de cura, simbolizando a entrada no mundo subterrâneo". Jung chama a este ritual de "processo de individuação, de identificação com a totalidade da personalidade com o Self ".
Acompanhando este ritual, podemos ver o Círio como um exercício de busca de individuação que os fiéis realizam a cada ano. O 'banho de suor' comparado a dança da corda; a descida ao 'mundo subterrâneo' realizada através dos sacrifícios e do cumprimento das promessas; podendo ser vistos como a tentativa de integração da personalidade com o Self.
O azul da Esfera pode ser entre outras, a cor do manto celestial, simboliza calmaria, descanso, paz. "A meditação sobre a pedra azul-safira leva a alma à contemplação dos Céus". Este é o sentimento que fica após o término do Círio.
Durante o desenvolvimento desse trabalho busquei preservar o símbolo, das minhas opiniões pessoais, pois como se sabe, tal manejo é muito delicado, uma vez que cada pessoa tem a sua percepção acerca dos objetos. Me esforcei em ver o símbolo com um olhar coletivo, a partir de imagens e fatos que ficaram registrados de alguns Círios que pude acompanhar, do levantamento de dados a cerca da festa e da pesquisa de explanação dos símbolos. Pude mostrar dessa forma, que os símbolos estão presentes em todas as culturas sejam elas urbanas, rurais ou primitivas; percebe-se também que estes símbolos possuem significados parecidos, o que se dá em função de sua universalidade. Nesta procissão, tal conclusão se evidencia no trabalho de amplificação dos seus símbolos. Assim, tentei mostrar a forma como eles são percebidos pelas pessoas que acompanham o Círio e em particular pelo povo paraense.
Nesse parágrafo encerra-se a apresentação desse trabalho, que teve também entre outros objetivos trazer um pouco mais de conhecimento a respeito da tradição dessa cidade, Belém, que particularmente é a minha cidade-'mãe'. Trazer também, algo de novo, de interessante para as pessoas que não tiveram a oportunidade de conhecer esta procissão religiosa. Espero ter contribuído com a apresentação e amplificação de alguns símbolos que aqui foram relatados e acima de tudo lembrá-los que a fé (energia) está sempre presente, mesmo que não possamos vê-la, é como o numinosum, a influência de uma presença invisível, que causa uma transformação especial da consciência sem que percebamos.

Bibliografia:

Avens, Robert. Imaginação é Realidade. Coleção Psicologia Analítica -Ed.Vozes.
Brandão, Junito de Souza. Mitologia Grega Vol. II, 5ª edição - Ed. Vozes.
Boff, Leonardo. O Rosto Materno de Deus. 6ª edição - Ed. Vozes.
Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio Editora.
Círio - O Pará Unido na Fé. Edição especial da revista VER-O-PARÁ. Agência VER Editora Ltda.
Jung, C.G. Fundamentos de Psicologia Analítica. Coleção Psicanálise. Ed.Vozes.
________ O Homem e seus Símbolos. Ed. Nova Fronteira.
Zoja, Luigi. Nascer Não Basta. Ed. Axis Mundi.

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